Auto da barca do inferno

Sobre o autor
Teatrólogo e ator português nascido em lugar ignorado, criador do teatro em Portugal, também chamado de teatro vicentino, basicamente caracterizado pela sátira. Sua biografia ainda permanece uma incógnita, não havendo provas definitivas que possam estabelecer com segurança sua identidade. Sua carreira teatral começou de forma inusitada: por ocasião do nascimento do filho de D. Manuel e D. Maria de Castela (1502), ele entrou nos aposentos reais e, diante da corte surpresa, declamou um monólogo que tinha escrito em castelhano, o Monólogo do vaqueiro ou Auto da visitação, um texto sobre como um simples homem do campo expressava sua alegria pelo nascimento do herdeiro, desejando-lhe felicidades. A interpretação entusiasmou a corte, que lhe pediu a repetição na passagem do Natal. Ele aceitou o convite, mas apresentou outro texto, o Auto pastoril castelhano, que também fez sucesso. Tinha início, assim, uma brilhante carreira, que se estenderia por mais de 30 anos, no período histórico mais progressista da vida portuguesa. Há poemas seus no Cancioneiro geral, organizado e publicado (1516) por Garcia de Resende. No reinado de D. João III e com o reconhecimento da irreversível decadência do comércio oriental (1530), Portugal mergulha na sua crise mais profunda, que levaria ao desastre de Alcácer-Quibir e ao domínio espanhol (1580). Escreveu autos, comédias e farsas, em castelhano e em português. Foram 44 peças, sendo 17 escritas em português, 11 em castelhano e 16 bilíngües. A sua mais famosa peça teatral foi a Trilogia das barcas, formada pelo Auto da barca do Purgatório, Auto da Barca do Inferno e Auto da barca da Glória. Outras importantes foram Farsa de Inês Pereira (1523) e Auto da Lusitânia (1532). Também chamado de o Plautus Português, sua última peça foi Floresta de enganos (1536), mas há dúvidas sobre o local e o ano exatos de sua morte. Seu filho, Luís Vicente, publicou a compilação de todas as peças do pai (1562), porém a obra deixou muito a desejar por ser incompleta e pelas alterações ocorridas em vários textos. Seus tipos humanos são tipos sociais que caracterizaram bem o teatro vicentino. A a maior parte desses personagens não têm nome de batismo e são designados pela profissão ou pelo tipo humano, como o velho apaixonado que bobamente se deixa roubar, a alcoviteira, a velha beata, o sapateiro enrolão, o escudeiro fanfarrão, o médico incompetente, o judeu ganancioso, o fidalgo decadente, a mulher adúltera, o padre corrupto etc.
Resumo da obra
Auto da Barca do Inferno é um auto onde o barqueiro do inferno e o do céu esperam à margem os condenados e os agraciados. Os que morrem chegam e são acusados pelo Diabo e pelo Anjo, mas apenas o Anjo absolve.
O primeiro a chegar é um Fidalgo, é seguido por um agiota, por um Parvo (bobo), por um sapateiro, por um frade, por uma cafetina, e um judeu, um juiz também vai, por um promotor, por um enforcado e por quatro cavaleiros. Um a um eles aproximam-se do Diabo, carregando o que na vida lhes pesou. Perguntam para onde vai a barca; ao saber que vai para o inferno ficam horrorizados e se dizem merecedores do Céu. Aproximam-se então do Anjo que os condena ao inferno por seus pecados.
O Fidalgo, o Onzeneiro (agiota), o Sapateiro, o Frade (e sua amante), a Alcoviteira Brísida Vaz (cafetina e bruxa), o judeu, o Corregedor (juiz), o Procurador (promotor) e o enforcado são todos condenados ao inferno por seus pecados, que achavam pouco ou compensados por visitas a Igreja e esmolas. Apenas o Parvo é absolvido pelo Anjo. Os cavaleiros sequer são acusados, pois deram a vida pela Igreja.
O texto do Auto é escrito em versos rimados, fundindo poesia e teatro, fazendo com que o texto, cheio de ironia, trocadilhos, metáforas e ritmo, flua naturalmente. Faz parte da trilogia dos Autos da Barca (do Inferno, do Purgatório, do Céu).
Cada um dos personagens focalizados adentram a morte com seus instrumentos terrenos, são venais, inconscientes e por causa de seus pecados não atingem a Glória, a salvação eterna. Destaque deve ser feito à figura do Diabo, personagem vigorosa que conhece a arte de persuadir, é ágil no ataque, zomba, retruca, argumenta e penetra nas consciências humanas. Ao Diabo cabe denunciar os vícios e as fraquezas, sendo o personagem mais importante na crítica que Gil Vicente tece de sua época.


Auto da barca do inferno     X      Auto da compadecida

São duas obras grandiosas do teatro de literaturas da Língua Portuguesa. A Obra de Gil Vicente, de 1517 e a de Ariano Suassuna, de 1955, estão separadas por 438 anos.

Ambas são humanistas e representativas do pensamento da época em que foram escritas.

Gil Vicente procura chamar a atenção para a necessidade de uma nova postura, não apenas clerical, mas também de uma sociedade corrompida. Critica os costumes da época e tem forte influência humanística, que procura valorizar o homem e a natureza, ao contrário do Teocentrismo medieval. Nesta obra é mostrado o contraste entre o bem e o mal. Estes autos, na época medieval eram mostrados ao público com o fim de moralizar e instruir.

No Auto da Barca do Inferno, o anjo é implacável ao determinar a sentença divina que cabe aos pecadores, e para a qual não há apelação. É utilizada a representação da morte, do juízo e do destino posterior dos homens, com argumentos satíricos e divertidos. Nem o anjo, nem o diabo esperam modificar homens e mulheres. Eles rematam, não conduzem o processo. Não criam condições, apenas sublinham aquelas que as personagens se pautaram.

No Auto da Compadecida, o Juízo Divino caracteriza-se de forma diferente., pois João Grilo apela e a Compadecida interfere em seu favor.

Ariano Suassuna, em O Auto da Compadecida faz uma releitura do aspecto formal do auto, no qual insere elementos diferentes sem haver muitas diferenças entre os personagens.

A figura do parvo, de Gil Vicente e de João Grilo, de Suassuna, se aproximam quando representam o homem simples em busca da sobrevivência e que por isto, cometem «Pecados».

Os Autos se aproximam quanto aos seus objetivos de criticar uma sociedade hipócrita. No Auto da Barca do Inferno o clero é libertino. O Auto da Compadecida, mostra também um clero corrupto, assim como o comerciante explorador e o avarento, ou ainda a mulher promíscua e infiel, todos condenados à Barca Infernal ou ao purgatório.

Os julgamentos dos autos divergem. São dois planos antagônicos de apreensão da moral cristã. Para Gil Vicente há um julgamento divino pré-determinado pelas sentenças cabíveis, não podendo recorrer ou apelar. Para ele, a concepção de juízo é de um juízo inflexível e determinante.

Ariano Suassuna apresenta um julgamento em que as personagens podem dialogar, apelar e interceder. Há uma ampla comunicação entre os três planos: divino, terreno e infernal. Suassuna propõe um exercício de salvação contínuo dos personagens, em um jogo bastante criativo entre o bem e o mal.

Quanto à Lingüística, os dois autos apresentam gírias e expressões da época representada. Suassuna caracteriza a influência e a crença do povo na Compadecida – imagem forte para os nordestinos. Gil Vicente, em sua obra critica a igreja e os que se afastaram de seus princípios morais.

Suassuna valoriza o verdadeiro preceito cristão, compadecendo-se do homem que peca, devido à injustiça da sociedade, e que por isso tem direito de apelar e se defender, buscando salvar-se. Este escritor é mais humanista em sua peça, dando ao homem, uma singular importância.